terça-feira, 31 de maio de 2011

Salvando Bollywood

Antes de entrar no avião de volta para casa, teria que me certificar que eu me fizesse entender: "ESTE PAÍS É FEITO DE LUNÁTICOS! ATÉ NUNCA MAIS!"

Que tal começar do começo? Mais uma reunião no oriente. Bollywood tem novos projetos cinematográficos e quer americanos trabalhando para eles. Pois bem, cá estou eu. Infelizmente.

"Ah, senhor Tiger! Finalmente! Por acaso perdeu-se no caminho?"
"É uma longa história, senhor Vhadrik. Pra começar, minha pasta foi roubada por um maldito macaco no aeroporto... E quando pedi o destino ao motorista, que o senhor garantiu que conheceria, ele me largou num bar imundo com o mesmo nome do seu estúdio. Pensei que já que deveria esperar outro táxi, por que não beber alguma coisa aqui mesmo? Talvez isso me matasse e eu não precisasse mais sentir o cheiro que emanava de todos os cantos daquela espelunca. Mas fora eu ter pisado na lama de um bueiro e ter que jogar fora meu mocassim, depois disso, correu tudo bem."
"Hmm... Por acaso, sua pasta é parecida com esta?"
"Sim! Mas como vocês--"
"Caso o senhor não saiba, adestramos o "maldito macaco" para carregar sua bagagem como parte da recepção de nossos convidados. Disponha."
"Desculpe, eu não--"
"E o bar com o mesmo nome do estúdio pertence ao meu irmão."
"Mas pelo menos o preço era justo."
"É, ele está tendo problemas com a justiça e pretende vender o bar em breve..."
"Pois é, meu pai tinha um bar, também, eu--"
"...E a vigilância sanitária já fechou o bar duas vezes, talvez consiga pelo menos pagar a fiança do filho."
"Hmm... Situação difícil."
"Mas ele já está acostumado, é o quarto preso esse ano, é provável que não consiga."
"Mas o que se pode fazer, afinal, não é mesmo?"
"Ah, se aquele bastardo não fosse tão cabeça dura... Eu lhe disse pra aceitar casar com a nossa prima, mas não "O amor é mais importante irmão..." Que coma os ratos que ele cria no próprio fim de mundo que é aquele bar. Que vergonha para a família."
"Desculpe, não percebi que havia um conflito fam--"
"Conflito? Que nada, somos vizinhos... Almoçamos juntos lá todos os sábados!"
"Ehr... Eu, é melhor irmos direto para o projeto, não é mesmo? Me conte, o que querem fazer?"
"Um filme de ação mais moderno, ambientado na cidade, estilo Duro de Matar, Máquina Mortífera, sabe?"
"Moderno?"
"É, trouxemos o melhor ator de ação de toda a Índia pra esse estúdio e o filme vai ser feito sob medida para ele. É o senhor Jigranindsa."
"Hm, isso é perigoso, eu diria, vai saber como são esses atores daqui... Nem cheguei a vê-lo, o projeto todo está na minha pasta. Mas vamos ver isso. Ah, um cafézinho por favor, e mande rápido, que esta reunião já começou atrasada... Mas então, quem é o homem?"
"Você acabou de pedir um cafezinho para ele."
"Ah, me desculpe senhor Jigranindsa... Eu... Então, qual é o roteiro?"
"Começa com o rapto da prometida dele, numa cidadezinha de interior. Ele descobre que é a organização terrorista Al-Qaeda que está por trás de tudo e inicia uma busca até chegar no QG deles e explodir tudo"
"É, parece bem... Indiana. Posso ver que o enredo não é tão conciso. Mas acho que o público engole com alguns milhões a mais em cenas de ação."
"... E Temos muitas explosões para vocês americanos."
"hehe, pois é, sei que têm."
"Camelos também, muitos camelos."
"Sim, sim, mas veja... O show business não se faz só com perseguições a camelo... O que eu quero dizer é que--"
"... Garrafas quebrando, estilhaços, faíscas, temos uma rampa para os jipes voando... Como pode ver, vai ser um sucesso garantido."
"Tudo bem, mas..."
"... Temos quase uma tonelada de dinamite, vai ser o melhor filme da década."
"TUDO BEM, MAS... Mas vejo aqui que o protagonista tem 23/24 anos... E seu ator tem quase 50. É uma diferença bem visível, acho que talvez, por alguns momentos entre uma e outra explosões, parem pra pensar nisso... Um rapaz recém saído da faculdade com habilidades de um veterano da guerra... Alguma coisa não fecha... E tem mais, esse bigode o envelhece..."
"Mas o quê!? Cortar o bigode, nunca!"
"Mas esse bigode já está até meio grisalho, não vai dar certo..."
"É a marca registrada do senhor Jigranindsa, está fora de questão. "
"Tudo bem, então é só mudar a idade no roteiro, acho que não vai atrapalhar em nada."
"O roteiro é o roteiro, fora de questão."
"Adiante então..."
"Temos então o clímax, uma perseguição automobilística cheia de emoção no meio de Nova Délhi, o público vai delirar."
"Mas o filme não se passa num povoado no interior?!"
"Pois bem, a perseguição começa lá, na verdade, numa área de conurbação."
"Mas aqui diz que o povoado fica a mais de 200 quilômetros de lá!"
"O clímax está planejado para durar aproximadamente sessenta porcento do filme, senhor Tiger... Nós assistimos à seus filmes, a América ama perseguições automobilísticas. Um sucesso!"
"... Deixa eu adivinhar: carros voando?"
"Como pássaros."
"Explodindo?"
"Pretendemos usar tanta dinamite quanto possível e queimar a retina dos espectadores, vão ficar sem enxergar direito durante uma semana. O filme vai ser um sucesso!"
"Camelos?"
"Uma perseguição automobilística sem camelos é como um Big Mac indiano feito de carne bovina, senhor Tiger, uma profanação da tradição cinematográfica indiana; Uma heresia."
"Mas onde os camelos entram, exatamente?"
"Logo após o carro do protagonista explodir."
"Ele escapa logo antes, eu presumo... Acho que iremos precisar de dublês extras..."
"De maneira nenhuma! Ele é impulsionado pela explosão de uma bomba implantada logo abaixo do seu banco e pousa suavemente sobre as costas de um camelo que sai atropelando um batalhão de trinta soldados armados, galopeando por cima de suas cabeças e chutando seus capacetes. Projetamos esta cena cômica para as crianças"
"É a coisa mais incrível que já ouvi, vocês me surpreendem a cada novo detalhe! Aqui fala sobre helicópteros, o que tem isso?"
"O protagonista salta de cima de um prédio de quinze andares e atravessa três helicópteros"
"Não quero nem saber como ele chega até o décimo quinto andar com o carro. Helicópteros são caros, senhor, o senhor tem verba para isso?"
"Não precisamos, é só repetir o take do carro atravessando o helicóptero três vezes seguidas."
"Muito bom, vocês pensam em tudo, mesmo!... Um momento, vou até o banheiro, não aguento tanta ação em tão pouco tempo, heh!"

"Sim, vá, senhor Tiger, temos muito mais explosões para o senhor... Viu, senhor Jigranindsa, os americanos adoram nosso cinema. O senhor vai brilhar e nós ganharemos o mundo. Foi fácil convencê-lo, não?"

"Até nunca mais, otários."
A porta se fecha e eu volto para o mundo real, um sonho expressionista de odores, cores e pessoas. O que Orson Welles diria? Nada, provavelmente ele não seria tão maluco de vir para cá.

Inspiração pro texto me veio DAQUI
Postado também no COELHO HOLANDÊS

domingo, 1 de maio de 2011

Aviso!

Aviso à quem se interessar que estou agora postando também no Het Nederlanse Konijin, o blog do @miroez com uma proposta parecida com a deste aqui. Tem muita coisa bacana lá, vários autores e posts regulares (se te incomoda essa permanente inconstância d'o grande merecedor...). Acessem!

O Rio das Almas

(...)"E, afinal, o que seria de mim? Nada, meu senhor! Nada..."

"E isso, acaso, é motivo de preocupação? Ora, um nada por outro."

"Seu desdém me espanta, meu senhor. Me pergunto se há algum coração perdido dentro de ti, ou é vazio completo."

E tocava-lhe o peito com estocadas vigorosas de um indicador calejado, como se fosse provocar além de asco, alguma reflexão em seu senhor. Acreditava, ingênuo, que algo como o gérmen do questionamento moral fosse impugnado em seu senhor por cada vez que o tocasse. Talvez não o tenha tocado tantas vezes quanto o necessário.

"Por que motivo gasta teus pensamentos com objetivo tão fútil? Compaixão é o refúgio dos inseguros, dos perdidos e dos que a necessitam tanto quanto cedem. Ademais, não faço a linha da demagogia, e se me dou ao desserviço de falar-lhe é com sinceridade."

"Ha! Sinceridade mordaz! Qual ninguém presta-se a ouvir. Do contrário, invades o cérebro de quem te aproximas com sua língua ferina, não te poupas de golpes à navalha mal-afiada em cada ouvido do teu semelhante, se for; te comunicas com a cortesia de uma víbora antes do bote. E não me ponha na cara esse seu vocabulário vil. Tua imagem me aparece em pesadelos e eu os vivo todos os dias na obrigação de lhe ser fiel. A que ponto chega-se! A insanidade me tomava ainda esses dias do mês... Amaldiçoo agora a maldição que roguei ao negro dia em que conheci tua terra. Tão cego de ira que tornei-me, culpei a mim, a ela e a Deus, meu bom Deus, que julgo eu não ter conhecimento de sua existência, por não ter fulminado o senhor quando lhe cabia, no início de seu surgimento neste mundo! Desde cedo, o sacrifício de sua doce mãe para trazer-lhe à vida já mostrava a quê o senhor veio: o infortúnio. O senhor é quem traz os corvos até os cadáveres, é o senhor que espalha os insetos pelas casas, é o senhor que traz a peste! Esta terra negra guarda o sangue dos teus desafetos, e bebemos o sangue deles ao comer o que esta terra nos dá de comer! Tenho confissões que sobressaltam o vigário, de descrições da minha sede de revide! É o pior que fazes: Contamina com teu veneno e torna teus servos pares de ti em perversidade... Acaso tivessem o teu poder, tua história teria há muito sido feita esquecida."

Enquanto o servo vociferava seu monólogo, o senhor apenas arqueava suas sombrancelhas, demonstrando que havia algo de esperado na cena. E algo que esperava-o depois.

"Faz o que te mandam quando viram-te as costas e não podes mais ouví-los: Fode-te! Dana-te! Dana-te!"

E parte em direção ao seu aposento, certo de que não tardará e a desforra senhorial pousará sobre sua cabeça, ou estrangulando sua traquéia ou perfurando seu peito. Tinha pensado em algo que coubesse num momento como este havia tempos, mas convencera-se de que seu lugar. Embora lhe interessasse a idéia de um atentado contra seu senhor, era preciso bom-senso. A captura por homicídio de seu senhor traria muito mais determinação para o seu carrasco do que a simples blasfêmia. Por último, havia pensado em Deus, mas se Deus resguardava-se quanto à postura de seu senhor, teria alguma simpatia por um humilde servo que perdia mais tempo em igrejas do que na terra a trabalhar. Começa a juntar suas coisas.

"Pietro..."

"Sim, meu senhor?"

"Busque e escolte o senhor Yuri à sua nova morada, o 3º estábulo. Que seja a definitiva, entendeste?"

"Sim, meu senhor."

"Ah, e Pietro... A cidadela não deve achar-se informada dos terríveis desígnios que Deus, o bom Deus reservou ao seu companheiro, sim? Os cães estão sempre famintos."

Os segundos seguiam-se rápidos demais nos movimentos apressados de Yuri e espaçosos no caminhar calmo de Pietro. A porta se abre e Yuri vê seu algoz de longe, e ele também é visto. A obviedade da fuga faz Pietro lançar-se numa corrida despassada enquanto busca o facão na cintura. Os pertences foram jogados como obstáculos. O brilho metálico anuncia que é seu fim nesta terra ou recomeço noutra mais distante, no Rio das Almas. Era dia um dia claro. E ele se perguntava onde estava Deus. Talvez ele não tenha acordado hoje, pequeno.


Também no Het Nederlanse Konijin