quarta-feira, 18 de agosto de 2010

"Está implícito" significa "não pergunte"

Andava com aquela cara complacente de quem não tem muito a dizer, mas que pensava em muitas coisas. E então, de repente, como se tivesse sido empurrado de uma janela de um edifício alto o bastante para transformá-lo numa poça bizarra de partes internas e mucosas misturadas ao seu próprio o sangue, exclamou, no meio da rua dos Andradas:

"-As pessoas que vão deixando buracos em mim, e eu não consigo encontrar quem os tape de volta. Vou acabar ficando vazio"

Meu tio enlouqueceu há uns anos atrás, na semana em que perdeu o emprego de anos para um cara mais novo, havia perdido a casa por dívidas no banco e terminou por descobriu que sua mulher o traía e chegou em casa bem na hora que ela estava fazendo as malas pra fugir com o cara; o amante estava lá e havia resolvido levar algumas coisas dele, os dois iam sumir, mesmo. Havia encontrado um revólver, calibre grosso; meu tio ouviu um pouco da conversa dos dois e abriu a porta com força, o bastante pra assustar o cara; Mas o cara era um cagão, não teve coragem de atirar, meu tio voou com tudo pra cima dele e o revólver disparou, pegou de raspão no braço do cara e o filho-da-puta deu uma coronhada na testa dele. Não entendo muito de cérebro, obviamente o negócio foi sério, tanto que meu tio não lembrava de nada. Também começou a falar o que vinha na cabeça aleatoriamente.

"-Vou ficando cego pras coisas grandes e daltônico pras pequenas, sabe? Mas, ô, Palique, você desde pequeno tem cores tão bonitas."

O Palique sou eu, Paulo Tigre. Eu sei lá, você tem que compreender que não é fácil. Eu encontro alguém aqui e não digo que estou caminhando sozinho. E tenho que rezar pra que ele não berre alguma coisa que me faça ter que acalmá-lo. Eu não me ofereço pra sair com ele, mas não nego se me pedem. Ainda mais se ele pede. É até estranho quando ele articula alguma frase em seu sentido perfeito, uma ordem ou uma contatação que faça a gente olhar pra ele esperando que depois dela venha mais uma assim e que, do nada, faça ele voltar ao normal: "(...) -tá meio abafado aqui, né? Vou dar uma caminhada, preciso de ar fresco."- daí ele limpa a boca com um guardanapo, põe a colher ao lado do prato de sopa, olha pra mim e me encara por uns 3, 4 segundos e eu aceno que concordo com a cabeça e a gente sai. E depois disso não diz mais nenhuma palavra até a gente voltar:

"-Que vento frio, cortante! Devo estar sangrando, melhor fazer um curativo pro corpo inteiro. E um pra alma."- faz o sinal da cruz e começa a rezar um Pai-nosso.

Talvez o que eu realmente goste nele é a ingenuidade imponderada do que ele fala quando está tudo silencioso, ou tenso principalmente. Às vezes ele abre a boca e é como um isqueiro tipo Zipo no meio da floresta, faz uma onomatopéia pra acordar todo mundo, acende uma tocha e, refletindo a chama em amarelo bem vivo nos olhos deles, sinaliza a presença de todo tipo de predadores. Aí, a chama se esconde dentro da tampinha e você fica esperando o bote de algum deles. Jesus, com essas metáforas, vocês vão achar que o louco sou eu.

"-"Está implícito?" Mas será possível? Agora quer dizer que "Está implícito" significa "não pergunte!?" Essa gente que cochicha o que ninguém quer ouvir, vocês têm que GRITAR!"- sentado na frente da tevê.

Meu tio não é nenhum Antônio Conselheiro. O que ele fala faz certo sentido quase sempre, e não é preciso muito esforço pra que as nuvenzinhas de pensamento que pairam sobre a sua cabeça se conectem com a realidade, mas acho que todo mundo desistiu de tentar encontrar ele nas suas próprias palavras.

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