quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O primeiro. O segundo.

O primeiro começa com uma cama rangendo e algum suor. O segundo passa as horas transformando-se em  fóssil e desfazendo-se em pó. O primeiro sente-se satisfeito e de certo modo até confortável, embora não faça ideia de que está discutindo com um vaso de flores. O segundo ainda espera que esqueçam seu rosto numa pequena cidade da Bahia. O primeiro afasta as cadeiras pra vomitar e consegue cambalear até o sofá. O segundo sente-se forçado a abandonar a casa de três andares dos pais por achar que não saberia como lidar com eles depois que as notícias da sua viagem chegassem até os ouvidos deles. O primeiro não sabe, mas tem um tumor qualquer em alguma parte do corpo que irá parar de funcionar e matá-lo depois de um ou dois anos de internação. O segundo perderá a vida durante o sono e passará seus últimos 11 anos de existência tentando deixar algum traço da sua personalidade no seu sobrinho. O primeiro consome um fim-de-semana inteiro na cama lendo On The Road pela segunda vez. Faz 4 refeições durante esse tempo. O segundo sente-se atraído por louras de salto alto maiores do que ele mesmo. O primeiro descobriu que tem um filho de dois anos há três dias. O segundo espera calado até que seu terceiro inquilino do ano acalme a esposa para lembrá-los de que o aluguel está atrasado. O primeiro perde bêbado o último ônibus de um domingo de céu sem estrelas. O segundo esquiva-se de entregadores de folheto como se tivessem facas nas mãos.


O primeiro vê seu futuro nas lápides do Père-Lachaise. O segundo sequer lembra de que está vivo.

domingo, 16 de outubro de 2011

"narração sobre a figura mais melancólica que eu já vi"

E quando eu sentei na frente da loja -te contei essa, einhô... Hein, cara, te falei da vez que eu vi o velho na frente da loja? Tá... Então eu tava acompanhando a minha namorada e a sogra, foram comprar roupas. Coisa de mulher, obviamente eu tirei os fones do bolso e sentei do lado de fora. Aí eu levantei os olhos devagar e de repente vi a figura mais melancólica que eu já vi. Foi um susto mesmo, sabe? Tu olha pruma pessoa e sente tanta pena que dá vergonha. Depois de uns 30 segundos, percebi que eu tava encarando ele com uma cara tão séria que se ele me visse, era capaz de achar que eu era um psicopata, ou coisa assim. Pra ajudar, o Mick Jagger tava dançando na minha orelha me dizendo coisas como "You can't always get what you want" e quando eu troquei de música pra não acabar com o meu dia que já tinha começado mal numa vitrine de boutique feminina, surge um Nick Cave sussurrando pra mim "hold on to yourself". Porra, eu tava sem saída e achei que aquilo era um sinal. Não acredito em nenhuma superstição, mas quando alguma coisa convenientemente se encaixa, é como se Deus tivesse dado um toquinho no meu ombro e quando eu virasse de volta depois de ver que não foi ninguém, eu percebesse alguma coisa incrivelmente óbvia na minha frente. Então eu fiquei ali pensando no velho.

Era um senhor numa cadeira de rodas com uma esparadrapo na veia do braço e fumando um cigarro no canto da vitrine, uma vitrine enorme com um letreiro enorme e um velho fodido largado no canto, que provavelmente já serviu de mictório público em algumas noites. Não tô querendo te deixar pra baixo, mas é que essas coisas ficam na minha cabeça, eu vejo que sem exagero tenho uma tendência a ficar que nem ele. Pra começar, ele tava fazendo a mesma coisa que eu, esperando as filhas, sobrinhas, netas... E de lado, ainda, porque a calçada era inclinada... Imagina, nem pra esperar a morte tu pode escolher uma posição!

Ultimamente tenho percebido bastante essa minha obsessão com perdedores. Não que eu realmente ache que vá ser um, mas porra, a vida é uma coisa tão incrivelmente grande, qual é a desse pessoal? Por que vocês me fazem escrever sobre gente que morre sem ter sido especial pra ninguém, ou já foi, mas essa outra pessoa morreu antes e ele termina tipo uma sombra no entardecer, esperando pra se ajuntar com o resto da mediocridade humana e fazerem juntos uma grande sombra que cobre o mundo todo e se juntam, na verdade, pra ficarem mais invisíveis ainda?

É essa porcaria de Nick Cave, preciso parar de escutar esse cara.

domingo, 18 de setembro de 2011

Gratidão Alheia

Vi que as coisas estavam perdendo o controle quando ele começou a mijar no meu pé.
Senti na lona do All-Star um quentinho me umedecendo e subindo à cabeça um pouquinho de raiva. Quem era mesmo aquele filho da puta?

Quando entrei no bar, ele me cumprimentando tão energicamente, apertando minha mão como um garotinho testando o limite dos encaixes do seu brinquedo novo. Simulando a embriaguez mais óbvia que eu jamais tinha  visto, e assim mesmo, acolhi os abraços demasiadamente afetuosos com uma receptividade tão natural quanto um quanto um tapinha no pênis como prova de gratidão por sexo: seria um tanto constrangedora, mas doce. Eu já não estava no meu maior pico de sobriedade... Mas ser recebido tão calorosamente no seu bar preferido, onde todo mundo já se falou ou pelo menos se viu algum dia, me fez sentir tão acolhido que eu fui obrigado a retribuir tamanha gentileza. Paguei uma para cada mesa, e todos levantaram os copos e interromperam suas conversas para reconhecer a minha magnanimidade num sorriso mais do que satisfeito, e uns ainda me cumprimentaram, de longe. Comecei a entender esses velhos que vivem nos bares.

Assim que eu consegui me sentar de frente pro balcão (sou daqueles que espera a companhia chegar, não que a oferece.) o querido anônimo atrasa o percurso de balcão-boca do uísque com uma chacoalhada no meu ombro; Olhei pro barman com os olhos entreabertos, mandando um sinal de fumaça, poderia haver fogo. Um aviso cortês, dizendo que não ia me responsabilizar. O barman respondeu com os olhos amistosos: "ali fora."

À princípio, me pareceu só mais um daqueles bêbados socialistas que viramos depois de virar uns copos. A embriaguez é um estado sublime. Ele veio me falando da mulher, dos filhos. Imagine! Já passou pela cabeça dele que eu posso ter pego meu casaco, meu chapéu e calçado as botas pra escapar de um lar assim? Não era o caso. Naquela noite.

E continuou descrevendo sua vida de trinta anos empregados em um emprego que não exige mas não afrouxa, uma esposa muito amável e satisfeita, dois bons filhos que se dão bem na escola e tementes à Deus. Me mostrou fotos no celular e as 3x4 deles na carteira. Mas só passei os olhos, alguém já tinha me contado sobre o homem. Foi uma tragédia, dizem.

Engoli uma quantidade de álcool que me fez contrair o rosto. Mas não engoli aquela baboseira. Ele então se levantou em silêncio e deixou um suspiro ao voltar pro mundo real. Com os olhos, tentou achar uma desculpa e partiu depressa. Não fez por mal, de certo. Seu olhar estava tão perdido quanto sua sorte. E quando se vive uma mentira, é preciso ter sorte.

Todo mundo simpatiza com o Paulo Tigre. Na verdade, esses aí tem é medo de acabar como ele. Há destinos piores, claro, mas fadar-se a uma ilusão é um fundo de poço mental. Quando levantei, ele já tinha saído do bar e com ele, o conteúdo das 7 doses de cachaça com butiá que ele pediu. O barman não deixou eu me afastar do balcão. Tudo bem, o desgraçado me ganhou. Paguei todas complacente. Não se pode fazer nada, ele vai acabar duro, gelado e sozinho. Eu só tratei de mantê-lo aquecido por aquela noite. Quando abri a porta, pisei na poça de mijo que se alargava com o ruidoso fluxo do meu dinheiro sendo expulso da sua bexiga. Ele se virou e o arco dourado pousou sobre os meus pés. Enquanto tentava manter-se fixo no meu campo de visão, tocou meu ombro com a mão desocupada e agradeceu por eu ter pago as bebidas. De repente, quis saber quem era aquele filho da puta. Tão desesperado por um pouco de atenção e cortesia, Deus, quando é que ele vai acordar? A esposa tão jovem e os filhos tão bonitos. Uma pena, de verdade. Mas não vou ser eu quem vai acabar mandando ele prum hospício. Pra que se incomodar?... Ele é completamente inofensivo, só um cara que não consegue viver a própria vida, quantos mais você acha que vai encontrar pelo resto da sua?

domingo, 21 de agosto de 2011

Sobre nossas cabeças

-Conheci um urubu ontem à noite. Três deles. São pouco espertos, mas circulam em bando por isso.-

Sabe o que pareceu? Que eram abutres, urubus... É que tava na cara que eles só queriam uma desculpa, eles tavam desafiando elas, e, claro, elas compraram. Mas tá certo, tem que comprar, mesmo, ainda mais que a gente tava em terreno inimigo, sabe? Sentados num café 24h na Padre Chagas... Te explico como chegamos lá noutro dia, enfim;

Sabe o que eu detesto naquele lugar? É que tu sabe que vai encontrar esses tipos lá. Ele é o cara que tem sempre novos amigos, os que tem cérebro e conheceram bem ele, ficaram pra trás. Mas o que importa é o prestígio, o cara é um merda, mas ele tem prestígio. Tá, tô ficando meio teórico, vou deixar este copinho de suco de cevada mais de lado; suco de cevada, conhece essa? É do Mussum, aquele cara era um gênio.

MAS... Voltando pro assunto, os três, esse bem coroa, um demagogo no sentido mais completo da palavra, tá ligada? Um cara que acha que conquista as pessoas só porque fala mais alto e diz que não tem medo de dizer o que pensa. Ele acha que é um diplomata, de certo, só porque consegue dizer "com todo o respeito" antes de te insultar, o cara que ri alto pra que todo mundo veja que é hora de rir também... Não, eu sei, parece triste, mas até que não é... Ele tava junto uma típica profissional em arranjar relacionamentos passageiros com homens mais velhos e ricos, então o velhote ia poder dar umas com uma mulher mais nova. Sabe o que me irrita? É que ele é um merda, mas sempre vai ter alguém pra dar uma masturbada no ego dele... E tinha um outro cara, que faz a linha "moderado em tudo", quem puxou o papo com a gente: "Qual é a treta?". Pobre coitado, aos 30 anos, e já usando Grecin 2000, quer ser incluído em todos os círculos.

Eu poderia falar tanto deles. Mas vou ser breve, entendo que a essa hora, é difícil de acompanhar e eu mesmo não tô conseguindo organizar os pensamentos na minha cabeça. Estávamos nós 4, e fora eu, os três eram gays. Não, minha cara, pode confiar no pai Tigre, aqui. Ah, mas eu sei, me garanto. Podia até te mostrar, mas aqui no meio da rua às 2 da tarde, iriam querem nos prender e eu te digo uma coisa, só paro depois da terceira...Haha! Então, eu era o único hétero, e, tá, deu! Deixa eu contar, poxa. Dúvidas sobre a minha masculinidade eu só respondo na prática. Ok, então. Aí, as duas garotas se beijaram, um beijo mesmo. Ser hétero nessas horas é cruel. Como diria o Raul, onde é que eu me encaixo? E a gente tava meio perto da mesa deles. Eventualmente, como eu disse, o cara puxou assunto com a gente e o assunto acabou entrando nisso e, pra resumir, o careca acabou tentando fazer elas explicarem como é ser lésbica. Algumas suposições a mais e logo esta perfeita descrição da demagogia ambulante comparou homossexualismo com pedofilia. E pronto, agora tínhamos seis pessoas falando alto e dando sua letrinha. Mas aí que vem o troço do urubu, eles ficaram rondando, só ouvindo a conversa, observando a maneira de como uma tratava a outra e dando aqueles risinhos um pro outro de "essa juventude tá se perdendo" e negando a cena com a cabeça. Estavam à  espera de que elas definhassem pra mergulhar até o chão e se alimentar da carniça. Não! não tô xingando ninguém! Mas tipo, que falassem alguma coisa errada, meio confusa e então iam rebater e sei lá, entrar numa discussão em que o cara dissesse "vocês são muito novinhas" ou que insinuasse que isso era um "ímpeto de transgressão" que elas tinham que exteriorizar. E, de fato, foi isso que aconteceu, o cara conseguiu. Não tô dizendo que elas foram ingênuas de comprar a discussão, mas é essa coisa de ficar à espreita, circulando sobre as nossas cabeças, pra espalhar suas certezas sobre a vida e suas conclusões sobre a natureza humana.

Deus do céu, certas pessoas amaldiçoam essa terra só por existir.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Blues do Sobrenatural

Mas e se acontecesse de novo?
(e se eu te visse) desviando do povo
(e se eu sentisse) sua mão gelada
(e se você sorrisse) na beira da calçada

Meu passo é tão seguro e meu caminho é escuro
Não pedi nenhuma escada pra descer do muro
Nessa noite gelada, eu quieto e ela calada
Dentro daquele vestido, uma ruivinha tão s...

Então eu vejo uma lanterna de fogo e um clarão
Paro pra encarar, ela quer me jogar no chão
Ela pega um cigarro e ergue até o rosto
Olho praquele vestido e meto a mão no bolso

Arranco do fundo o papo leve e um isqueiro
E alcanço uma faísca pra menina ligeiro
Uma chama e um sorriso e o cabelo vermelho
Eu peço seu nome como um cavalheiro

Ela me encara e arranca o fogo da minha mão
e bafora na minha cara, diz que "não"
"Menina, relaxa, só tentei ser gentil
vou voltar pro meu sossego, já queimei teu pavio"

Ri e diz que tá tudo bem,
que só queria um assunto pra puxar também
A essa altura, veja, eu já sabia de certo
que seria problema essa mulher por perto

Mas que olhar! Que sorriso! E que cheiro gostoso!
Essa mulher merece um pouco mais de esforço...
E a parada vazia e a noite tão fria
Não faria mal, aproveitar a companhia

Mas e se acontecesse de novo?
(e se você me visse) desviando do povo?
(e se você sentisse) minha mão gelada?
(e se você sorrisse) na beira da calçada?

E pro meu infortúnio, mordiscou aquele beiço
Ah, eu sabia, que eu iria perder a razão
me disse que sentiu um arrepio
e tocou a minha mão

Não sei de onde veio o berro que eu escutei
Naquele momento, acho que eu despertei
do feitiço maldito daquela mulher diabo
E disparei pra salvar o meu rabo

E então corri! Caí! Pulei! Perdi!
E já em casa, quando dei por mim,
E ouvi uma risada do corredor
Tranquei a porta e me salvo do terror

Então começo a chorar quando entro no banheiro
Horror eu vejo mesmo me encarando no espelho
Não paro de soluçar e de medo me ajoelho
Ao olhar pra pia, vejo ali o meu isqueiro


Mas e se acontecesse de novo?
(e se você me visse) desviando do povo?
(e se você sentisse) minha mão gelada?
(e se você sorrisse) na beira da calçada?

E se! Ah, nunca mais!

terça-feira, 31 de maio de 2011

Salvando Bollywood

Antes de entrar no avião de volta para casa, teria que me certificar que eu me fizesse entender: "ESTE PAÍS É FEITO DE LUNÁTICOS! ATÉ NUNCA MAIS!"

Que tal começar do começo? Mais uma reunião no oriente. Bollywood tem novos projetos cinematográficos e quer americanos trabalhando para eles. Pois bem, cá estou eu. Infelizmente.

"Ah, senhor Tiger! Finalmente! Por acaso perdeu-se no caminho?"
"É uma longa história, senhor Vhadrik. Pra começar, minha pasta foi roubada por um maldito macaco no aeroporto... E quando pedi o destino ao motorista, que o senhor garantiu que conheceria, ele me largou num bar imundo com o mesmo nome do seu estúdio. Pensei que já que deveria esperar outro táxi, por que não beber alguma coisa aqui mesmo? Talvez isso me matasse e eu não precisasse mais sentir o cheiro que emanava de todos os cantos daquela espelunca. Mas fora eu ter pisado na lama de um bueiro e ter que jogar fora meu mocassim, depois disso, correu tudo bem."
"Hmm... Por acaso, sua pasta é parecida com esta?"
"Sim! Mas como vocês--"
"Caso o senhor não saiba, adestramos o "maldito macaco" para carregar sua bagagem como parte da recepção de nossos convidados. Disponha."
"Desculpe, eu não--"
"E o bar com o mesmo nome do estúdio pertence ao meu irmão."
"Mas pelo menos o preço era justo."
"É, ele está tendo problemas com a justiça e pretende vender o bar em breve..."
"Pois é, meu pai tinha um bar, também, eu--"
"...E a vigilância sanitária já fechou o bar duas vezes, talvez consiga pelo menos pagar a fiança do filho."
"Hmm... Situação difícil."
"Mas ele já está acostumado, é o quarto preso esse ano, é provável que não consiga."
"Mas o que se pode fazer, afinal, não é mesmo?"
"Ah, se aquele bastardo não fosse tão cabeça dura... Eu lhe disse pra aceitar casar com a nossa prima, mas não "O amor é mais importante irmão..." Que coma os ratos que ele cria no próprio fim de mundo que é aquele bar. Que vergonha para a família."
"Desculpe, não percebi que havia um conflito fam--"
"Conflito? Que nada, somos vizinhos... Almoçamos juntos lá todos os sábados!"
"Ehr... Eu, é melhor irmos direto para o projeto, não é mesmo? Me conte, o que querem fazer?"
"Um filme de ação mais moderno, ambientado na cidade, estilo Duro de Matar, Máquina Mortífera, sabe?"
"Moderno?"
"É, trouxemos o melhor ator de ação de toda a Índia pra esse estúdio e o filme vai ser feito sob medida para ele. É o senhor Jigranindsa."
"Hm, isso é perigoso, eu diria, vai saber como são esses atores daqui... Nem cheguei a vê-lo, o projeto todo está na minha pasta. Mas vamos ver isso. Ah, um cafézinho por favor, e mande rápido, que esta reunião já começou atrasada... Mas então, quem é o homem?"
"Você acabou de pedir um cafezinho para ele."
"Ah, me desculpe senhor Jigranindsa... Eu... Então, qual é o roteiro?"
"Começa com o rapto da prometida dele, numa cidadezinha de interior. Ele descobre que é a organização terrorista Al-Qaeda que está por trás de tudo e inicia uma busca até chegar no QG deles e explodir tudo"
"É, parece bem... Indiana. Posso ver que o enredo não é tão conciso. Mas acho que o público engole com alguns milhões a mais em cenas de ação."
"... E Temos muitas explosões para vocês americanos."
"hehe, pois é, sei que têm."
"Camelos também, muitos camelos."
"Sim, sim, mas veja... O show business não se faz só com perseguições a camelo... O que eu quero dizer é que--"
"... Garrafas quebrando, estilhaços, faíscas, temos uma rampa para os jipes voando... Como pode ver, vai ser um sucesso garantido."
"Tudo bem, mas..."
"... Temos quase uma tonelada de dinamite, vai ser o melhor filme da década."
"TUDO BEM, MAS... Mas vejo aqui que o protagonista tem 23/24 anos... E seu ator tem quase 50. É uma diferença bem visível, acho que talvez, por alguns momentos entre uma e outra explosões, parem pra pensar nisso... Um rapaz recém saído da faculdade com habilidades de um veterano da guerra... Alguma coisa não fecha... E tem mais, esse bigode o envelhece..."
"Mas o quê!? Cortar o bigode, nunca!"
"Mas esse bigode já está até meio grisalho, não vai dar certo..."
"É a marca registrada do senhor Jigranindsa, está fora de questão. "
"Tudo bem, então é só mudar a idade no roteiro, acho que não vai atrapalhar em nada."
"O roteiro é o roteiro, fora de questão."
"Adiante então..."
"Temos então o clímax, uma perseguição automobilística cheia de emoção no meio de Nova Délhi, o público vai delirar."
"Mas o filme não se passa num povoado no interior?!"
"Pois bem, a perseguição começa lá, na verdade, numa área de conurbação."
"Mas aqui diz que o povoado fica a mais de 200 quilômetros de lá!"
"O clímax está planejado para durar aproximadamente sessenta porcento do filme, senhor Tiger... Nós assistimos à seus filmes, a América ama perseguições automobilísticas. Um sucesso!"
"... Deixa eu adivinhar: carros voando?"
"Como pássaros."
"Explodindo?"
"Pretendemos usar tanta dinamite quanto possível e queimar a retina dos espectadores, vão ficar sem enxergar direito durante uma semana. O filme vai ser um sucesso!"
"Camelos?"
"Uma perseguição automobilística sem camelos é como um Big Mac indiano feito de carne bovina, senhor Tiger, uma profanação da tradição cinematográfica indiana; Uma heresia."
"Mas onde os camelos entram, exatamente?"
"Logo após o carro do protagonista explodir."
"Ele escapa logo antes, eu presumo... Acho que iremos precisar de dublês extras..."
"De maneira nenhuma! Ele é impulsionado pela explosão de uma bomba implantada logo abaixo do seu banco e pousa suavemente sobre as costas de um camelo que sai atropelando um batalhão de trinta soldados armados, galopeando por cima de suas cabeças e chutando seus capacetes. Projetamos esta cena cômica para as crianças"
"É a coisa mais incrível que já ouvi, vocês me surpreendem a cada novo detalhe! Aqui fala sobre helicópteros, o que tem isso?"
"O protagonista salta de cima de um prédio de quinze andares e atravessa três helicópteros"
"Não quero nem saber como ele chega até o décimo quinto andar com o carro. Helicópteros são caros, senhor, o senhor tem verba para isso?"
"Não precisamos, é só repetir o take do carro atravessando o helicóptero três vezes seguidas."
"Muito bom, vocês pensam em tudo, mesmo!... Um momento, vou até o banheiro, não aguento tanta ação em tão pouco tempo, heh!"

"Sim, vá, senhor Tiger, temos muito mais explosões para o senhor... Viu, senhor Jigranindsa, os americanos adoram nosso cinema. O senhor vai brilhar e nós ganharemos o mundo. Foi fácil convencê-lo, não?"

"Até nunca mais, otários."
A porta se fecha e eu volto para o mundo real, um sonho expressionista de odores, cores e pessoas. O que Orson Welles diria? Nada, provavelmente ele não seria tão maluco de vir para cá.

Inspiração pro texto me veio DAQUI
Postado também no COELHO HOLANDÊS