terça-feira, 26 de outubro de 2010

Aquela sobre o bar da sinuca

O Bar *** era onde as grandes lendas e as potenciais estrelas da sinuca amadora se enfrentavam. Os seniores e os juniores apoiavam seus tacos nos dedos com graça e, por estarem completamente embriagados, os mais velhos tornavam-se mais ágeis e ousados e os jovens mais pesados e lerdos: em pé de igualdade. Tratava-se então de sinuca ilustrada, com influência talvez, da revolução burguesa da França, no século XXVIII, e, mesmo nesse caso, duvido que algum dos frequentadores desconfiasse do fato.

Dos velhos ideais, havia também a fraternidade e liberdade: ao derrotado restava um gesto simbólico de fineza, que desembolsasse uns níqueis a mais numa cerveja para seu rival; e, se a partida tiver sido boa mesmo, se tiver feito o coração do seu carrasco palpitar e pedir por mais, se o povo tanto se deixasse levar pela partida que, num sacrifício maior, repousasse a cerveja de lado e voltasse as vistas para a mesa, sobrava-lhe a honraria de aceitar uma dose mais-do-que-especial da cachaça da prateleira de baixo que lhe seria cedida à crédito. Cana essa que, mesmo na penúria da derrota por centésimos de centímetros (culpa da mesa, veredito unânime), teria sabor de vitória; cana essa, provavelmente vinda de um alambique caseiro da colônia; Enfim, reservada aos guerreiros da tribo dos índio véio, a um autêntico gaúcho peleador.

A liberdade ficava entre os limites da paciência do dono do bar. Excetuando-se fiado, fazia-se o que se quisesse lá dentro. Acontecia, porém, de ninguém estar interessado em nada mais do que sinuca, cerveja e trova fiada. O dono às vezes fazia concessões e os botequeiros agradeciam-lhe pedindo para que segurasse o troco  ou que o convertesse em guloseimas da bomboniére. 

O banheiro tem uma longa história: Não havia água na torneira, qualquer tipo de sabão ou sabonete, papel para secagem das mãos e nem chave na porta. Sequer uma fechadura de verdade; o que havia era um cordão preso por duas voltas na maçaneta que, ao ser enlaceado no gancho do porta-toalhas, deixava ainda uma fresta que permitia a quem estivesse do lado de fora enxergar uma perna e eventualmente, um braço tremelicando. Embora com a ausência de tais elementos talvez constate-se a perda efetiva da função sanitária de um sanitário, garante o dono que é "tudo absolutamente justificável": Não há água na torneira, pois o pessoal sempre esquece de fechá-la após o uso. E alguém, que ainda não foi identificado -"ainda", frisa o dono- andava vomitando ali- Gasta-se mais com limpeza do chão e desentupimento da tubulação do que com o efetivo asseamento das mãos. Sobre o sabão: Já se engasgaram com o sabonete e beberam no bico o tubo de detergente que o dono cogitou ser uma prevenção para outro acidente com o sabonete. O papel pós-enxague das mãos foi substituído por um pano da casa do dono, para efeito de corte de gastos. Aí roubaram o pano e esgotou-se a última tentativa de manter-se a dignidade do banheiro, junto com a paciência do dono. "Cortei tudo.".

Basta de descritivismos espaciais; a maioria da população de país qualquer de terceiro mundo como o nosso é testemunha do nascimento de um barzinho; são iguais em espírito, e de vez em quando vemos o brilho da fachada se apagar pra sempre até que seja transformada numa farmácia ou brechó, no pior dos casos, num salão de beleza. Voltemos nossa atenção para uma cena qualquer, dentro do aconchego das quatro paredes do bar.

Paulo Tigre jogava naquele bolicho todas as tardes de sábado, até o alvorecer do domingo, e era compromisso sagrado, sacríssimo. Não seria de se surpreender, mas se ocorresse de faltar aniversário de neto, por exemplo, era de certo que estivesse lá. Para acertar qualquer outro compromisso, sábado era dia morto. O dia em que ele vivia de verdade. Sinuca, cerveja e trova fiada.

Havia um mês que não aparecia nem para cumprimentar o dono ou molhar o bigode com os companheiros do ***. No estranhamento, uma das teorias era a de que talvez houvesse se dado bem e mudado de vida... Loteria, mulher rica ou um filho bem-sucedido e não tão desgarrado tinha voltado para buscá-lo do fundo do poço que era a vida insossa de um velho sinuqueiro aposentado. Não era intriga, não senhor; Estavam todos embriagados, e felizes divagando, esperando que o mesmo ocorresse com eles. Expunham suas expectativas acerca do retorno do que era na época de criança de cada um, em matéria de amor familiar. Histórias alegres, nostalgia e ocasionalmente, uma lágrima de saudade que ficava trancada nos limites da pálpebra, presa pela encabulação de se chorar por uma prosa boba na frente dos homens, velhos ou novos, uma fraqueza que não cabia num ambiente e era recolhida por um dedo indicador gordo e áspero, engrossado durante a vida no quartel ou nos labores de alguma construção ou várias. A lágrima é então analisada com um sorriso que garante que ela veio sozinha e guardada a esfregões nas costas da blusa. Guarda-se a lágrima para dividirmos com a esposa em casa, ou então com a foto da falecida em cima do criado-mudo. Então levanta-se, passa-se giz no dedo úmido, e de volta ao jogo.

A notícia chegou, e o dono até fechou o bar naquele dia e no próximo. A comoção foi geral, e botou-se até um cartaz de luto na porta. Paulo Tigre ficou pela bola oito, pendurou o taco, mijou, puxou a cordinha, testou a torneira, fechou a braguilha e a conta e foi-se pra não voltar.

Boteco, bodega, barzinho, bolicho; O *** era tudo isso. Apagou sua estrela na mesma semana que Paulo Tigre apagou a sua, na cama de casa. Causa Mortis: Complicações causadas por uma infecção que depois espalhara-se para o resto do corpo, contraída no ato de puxar a cordinha da caixa de descarga, assim como muitos outros antes dele, que ali livraram-se das suas podridões intestinais e não lavaram as mãos. A vigilância sanitária pegou duro por lá. Nunca haviam visto o dono chorar antes, e ele chorou ao ver seu bar fechado e os dizeres no aviso de interdição. Ali se ergueu mais um bar , mas em pouco tempo, o dono se matou, a sua senhora entrou em depressão e o filho começou a fumar crack antes, e depois antes e depois, e depois durante o horário em que deveria estar na escola. Aí colocaram lá uma farmácia. E o pessoal trocou de bar, agora têm que atravessar a rua pra chegar lá. Mas o espírito é o mesmo: Sinuca, cerveja e trova fiada.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Loteria

Me rendi à pieguisse de sonhar com a vida fácil. A gente acha que expectativa é uma coisa bem tola. Mas é só quando não é atendida. Ontem, era milionário. hoje, eu e 193 milhões de brasileiros acordamos 119 milhões de reais mais normais.

Chamamos expectativa de esperança, quando queremos engrandecer uma meta. Eu tinha só expectativa, havia quem tivesse esperança. As minhas expectativas não foram atendidas. Há aqueles que perderam as esperanças. Acontece todo dia.

Vi ontem, durante a viagem de ônibus até o centro, uma mulher de uns 30 e poucos anos, negra; a cor e a dor da colonização torpe; tudo isso dentro de formas antiestéticas, reclinada no meio-fio, braços e pernas estirados em extensão máxima e olhos fechados. Atropelamento. 

Me veio à cabeça, então, uma divagação de viagem: de que ela estivesse no caminho de volta de uma agência da Caixa, e acabara de retirar sozinha o prêmio da Mega-Sena. Sai de lá e sua vida se transforma de um jeito, que torna a filosofia mais vã e a matemática menos exata, a física torna-se plástica e a química menos odiosa. O sentido do curso da vida se inverte, 180 graus de mudança. Tudo se dobra, se ajoelha ou desaparece quando ela não está olhando, é tudo indiferente ao olhar dela, que não vê. 

180 graus é um ângulo raso, uma linha horizontal. Isso me lembra que ela está deitada na calçada. Minutos depois no hospital, o diagnóstico é coma. Ela é agora um vegetal. Um feijão, que vale ouro. Mas que depois de posto na panela, é só mais um feijão.

O sentido se inverteu, mas a direção continua a mesma;

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Sobre dias de surpresa

São sete e meia, e os cidadãos incautos de Porto Alegre estão deixando suas casas, esposas e esposos e filhos sob a guarda da prece da manhã; não apenas é a hora da refeição mais importante, mas a da reza brava também. Quem não o faz, mantém suas cercas elétricas energizadas, seus cães bem alimentados e os salários dos empregados pagos em dia; esses podem se dar ao luxo de deixar a oração para os padres.

Abre-se então a grade de ferro maciço, a fechadura de baixo, a da porta e pronto, se está fora de casa, ar puro e... Há ainda o portão de ferro, que permanece chaveado por todas as vinte quatro horas de que o dia dispõe. É a chave nova, que foi trocada porque a vizinha do apartamento de baixo foi assaltada ali na frente na quinta passada. Ali, na frente de todo o mundo, na avenida, lá pelas oito da noite, horário de risco, ora. Ela decerto ainda saiu vestindo algum farrapo: a saia e a blusa exuberantemente explícitas, quase um tapa-sexo. Pediu pra ser atacada, e se não fosse por bandido, coisa pior, polícia e tal.

Atravessa-se a rua e corre-se, que o sinal está aberto, mas o trânsito ainda está chegando na esquina. Não encare as pessoas por algum tempo enquanto anda. As coisas são diferentes por aqui e ninguém se conhece; não deve-se estranhar com o estranhamento das outras pessoas, já que estranha-se com qualquer coisa por aqui. Não há motivos para preocupação com essas pessoas, elas hão de estar aí amanhã novamente.

O ônibus chega sorrindo, quase agradecendo cada passo dado dentro dele. Gentilmente nos leva e traz de qualquer parada ao preço de uma refeição. Levante-se para os velhinhos e não olhe torto para aqueles que ouvem suas músicas em alto volume, você consegue sobreviver com a música ruim, mas com uma bala na cabeça, torna-se mais difícil; Cada moleque é um potencial psicopata.

Durante a jornada de trabalho, atenta-se à presença de possíveis mal-intencionados ou de gastadores. Se dá tanta atenção para um quanto para o outro, por razões absolutamente diversas. O Carlton azul do intervalo destila o estresse de ter que ver aquela vaca de mocassim devolver a mercadoria por achar que o casaco de lã não acertava bem na cintura. Besteira, ela precisava é de um regime, não de um outro casaco. Aí, faz um escândalo todo pela demora na troca... O problema estava no programa no computador, mas a velha, com aquele dedo em riste, parkisoniando na sua cara, não queria saber. Depois da última baforada, sobra o filtro, a cinza, e a cara da velha pra se rir depois.

De segunda à sexta-feira, são dias de surpresas. Desde o acordar até a hora de dormir, acontecem massacres no morro, acidentes de trânsito, milhares de presos por tráfico e milhões são desviados para o bolso de políticos. Sábado e domingo são dias comuns, fica-se em casa, sem surpresas; Podem ser boas ou ruins, boníssimas ou péssimas. É melhor não arriscar. Liga-se a tevê e hiberna-se até que a segunda-feira chegue, e então, pânico novamente.

O cotidiano é, afinal, um processo majoritavelmente insosso que reserva imensas quantidades de emoções, das mais diversas. Mas se faz de tudo para evitar qualquer contato com elas.

sábado, 25 de setembro de 2010

Ode ao Brasil, por meus excelentíssimos eleitos

Sou um pouco sádico, eu admito.
Tudo dentro dos limites diplomáticos, esteja dito!
Eu gosto dos que fazem carão,
dos que querem chutar o balde! E aí, quando se molha a mão...
(é claro que há os que se banham de corpo inteiro)

Saem com o rabo entre as pernas, o remorso lhes apeia no coraçãozinho;
Sentem-se sozinhos.
Mas o que é isso?!
Estamos entre amigos!

Se acha que voltas pra casa mais sujo,
se lhe anseia quanto ao risco,
Tenho pai, primos e um padrinho muito corujo,
Ah, não te acanhes, somos donos do fisco!

E, sobretudo, lembra-te, meu querido...

Como posso ter-lhe apreço
Quando nunca lhe falei, não lhe conheço?
E, -Por deus! Até Marx me aplaudiria!- teu prefixo me mostra quem és
E não compactuo com direitista burguês!

Vês? Não é barato, mas é o preço de manter as coisas andando neste meu Brasil:
-Seu e meu, companheiro... Nosso Brasil...

Bota abaixo, meu povo! Bota abaixo de novo!

O que é pobre, se mexe sozinho, é vivo e nocivo. Mas... Dá pra esquivar, Vossa Excelência.
O que é bom, a gente vende, senhor governador!
O que é bonito, a gente que construiu, sim, meu povo de nosso senhor Jesus Cristo Lula da Silva!


Tudo é negócio: a gente compra, aluga, empresta e entrega nossa gente pra Polícia Federal.


E que não sobre um!

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A paixão dos flamingos

-Boa noite, meu fricasséezinho!

Eles formavam um casal incomum.

-Adoro escorregar meu rosto na tua cara oleosa!

Ok, talvez eu os tenha subestimado. São de fato um tanto incomum.

-Amo o gosto do teu bigode!

Mas estavam in love.

-Quando tu chegas do trabalho com o cheirinho da padaria, eu perco a razão!

Pessoalmente, eu acho engraçado.

-Não venha colocar este dedo chupado na minha orelha, que eu te jogo na cama e tiro tuas cutículas!

Tudo bem, acho que é hora de deixarmos a sós, os dois pombinhos.

-Deixe que eu roa tuas unhas, meu croissant di pepperoni!

Pombinhos?... Não, deve haver um animal mais... Adequado. Javalis? Mas esses dois são tão delicados! Avestruzes? Não, não tão estranhos. Talvez um casal de flamingos: são lindos, mas não deixa de ser um estranho.

-Vou baixar o fogo do chuchu recheado, bote a roupa do Indiana Jones e me espere dentro do armário...


Ok, talvez eles não saibam que estão sendo observados; é melhor ligarmos a tevê e esperarmos que as coisas dêem certo para o Indie.

-Use esse chicote em mim!... ISssSSO! Assim mesmo! Me explore, professor Jones!





Hmm... Você devia ter vindo num dia em que eles estivessem brigando.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Das pessoas e suas fases

Paulo Tigre não gostava de polenta.

Nem de comida de ontem.

Nem de gordurinha na carne, nem de nervinho.

Vinagre?
"-E quem quer saber de água azeda?"

Paulo Tigre nunca lavou uma parede. Nem nunca trocou a roupa de cama. Nem havia cozinhado comida de verdade. De verdade, eu digo! Arroz com carne! Feijão! Estrogonofe! Cebola! Alho! Feijão! Feijão!

Era virgem de sabão em pó, vassoura-e-pá, esponja de aço, colher de pau, tanque...

E ÔNIBUS! O RAPAZ NUNCA PEGOU UM ÔNIBUS SOZINHO!

...E foi morar sem os pais
e gostou da coisa.

Acorda, toma café e vive nas aulas. E morre em casa.


Tem tesão pela louça suja.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Sobre as tentativas de morte auto-inflingida

Paulo tigre tinha um problema com a sua falta de vontade e de atitude. Certa vez tentou se matar com cicuta. Na verdade, não chegou a tentar, porque não havia encontrado cicuta na cidade. Na verdade nem saiu pra procurar: alguém tinha lhe dito que não havia cicuta na cidade e ele acatou a dica. Tecnicamente, ele nem chegou a perguntar; Apenas notou o fato de que em vez nenhuma havia ouvido sequer um comentário sobre cicuta durante a sua vida.

Então mudou de idéia: asfixia por CO2, dentro da garagem. Esperou os pais irem dormir e desceu as escadas. Com a chave na mão direita, ligou o carro. Mas Paulo tigre não tinha noções de direção automobilística e não havia notado que a marcha ré estava engatada. Num solavanco veloz, o carro disparara para trás e voara até o portão, empurrando-o para fora. Com 16 anos estampados entre espinhas e penugens no rosto, não foi difícil arranjar uma desculpa melhor do que uma tentativa de suicídio para o caso.

A verdade de verdade é que Paulo não era um grande exemplo de suicida. Desde as decepções amorosas da adolescência até a descoberta da dor sexual já no fim dela (digamos que paulo tigre começou do jeito errado), havia plantada em seu coraçãozinho a semente da tristeza crônica, mas ele já havia descoberto um meio alternativo e não tão extremo de exteriorizar esta fraqueza de espírito. Ele hoje escreve bobagens num blog. Cada um com seus pobrema.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Sobre a guerra de canudos

Não, Paulo tigre não esteve lá.



Antônio Conselheiro, Lampião, Maria Bonita... Paulo tigre não viu nenhum deles.


Nunca sentiu o cheiro da pólvora e do sangue no deserto do semiárido, nem viu os corpos chacinados dos revoltosos, nem viu Euclides escrutinando a paisagem.

Estava no Rio, bebendo Coca-cola e comendo um Bigmac, com seus amigos latifundiários e exportadores de café, aproveitando o que a velha república tinha a lhe oferecer.

Se a guerra de canudos não está nos video-games, então não, Paulo tigre nunca estará lá.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Das explicações.

Nunca fui fã de blogs em que o autor fala sobre suas próprias impressões. Vocês podem guardar para si suas impressões acerca do mundo, do círculo pop, da sociedade, das coisas simples da vida... Admiro quem tem tempo para divagações e para tecer teorias, mas me aborreço ao ler e quase poder sentir o ego de quem gosta de alardear suas opiniões. Não abro uma página na Internet querendo me identificar. E por que, então, estou falando de mim, aqui?

Porque este é o primeiro post, o das explicações.

Criei esse novo blog porque me encontrava descaracterizado em relação ao Hail to the King, baby!; bateu a sensação de que uma coisa já não te dá mais prazer. É como tentar sexo aos 70.

Enfim, senti a necessidade de me expressar; Aquela que dá antes de você resolver criar um blog e ainda depois de perceber que os 140 caracteres do passarinho azul não são o suficiente.



-Sozinho e sem dinheiro, Paulo Tigre cria um novo blog. Será o início de uma nova jornada de aventuras de tirar o fôlego? Ou uma monótona visita ao universo broxante que existe dentro de seu crânio, repleto de vazio e piadas-fáceis? Enquanto pensa numa maneira de acabar o primeiro post com uma piada, Paulo Tigre desliga o computador e vai estudar.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

"Está implícito" significa "não pergunte"

Andava com aquela cara complacente de quem não tem muito a dizer, mas que pensava em muitas coisas. E então, de repente, como se tivesse sido empurrado de uma janela de um edifício alto o bastante para transformá-lo numa poça bizarra de partes internas e mucosas misturadas ao seu próprio o sangue, exclamou, no meio da rua dos Andradas:

"-As pessoas que vão deixando buracos em mim, e eu não consigo encontrar quem os tape de volta. Vou acabar ficando vazio"

Meu tio enlouqueceu há uns anos atrás, na semana em que perdeu o emprego de anos para um cara mais novo, havia perdido a casa por dívidas no banco e terminou por descobriu que sua mulher o traía e chegou em casa bem na hora que ela estava fazendo as malas pra fugir com o cara; o amante estava lá e havia resolvido levar algumas coisas dele, os dois iam sumir, mesmo. Havia encontrado um revólver, calibre grosso; meu tio ouviu um pouco da conversa dos dois e abriu a porta com força, o bastante pra assustar o cara; Mas o cara era um cagão, não teve coragem de atirar, meu tio voou com tudo pra cima dele e o revólver disparou, pegou de raspão no braço do cara e o filho-da-puta deu uma coronhada na testa dele. Não entendo muito de cérebro, obviamente o negócio foi sério, tanto que meu tio não lembrava de nada. Também começou a falar o que vinha na cabeça aleatoriamente.

"-Vou ficando cego pras coisas grandes e daltônico pras pequenas, sabe? Mas, ô, Palique, você desde pequeno tem cores tão bonitas."

O Palique sou eu, Paulo Tigre. Eu sei lá, você tem que compreender que não é fácil. Eu encontro alguém aqui e não digo que estou caminhando sozinho. E tenho que rezar pra que ele não berre alguma coisa que me faça ter que acalmá-lo. Eu não me ofereço pra sair com ele, mas não nego se me pedem. Ainda mais se ele pede. É até estranho quando ele articula alguma frase em seu sentido perfeito, uma ordem ou uma contatação que faça a gente olhar pra ele esperando que depois dela venha mais uma assim e que, do nada, faça ele voltar ao normal: "(...) -tá meio abafado aqui, né? Vou dar uma caminhada, preciso de ar fresco."- daí ele limpa a boca com um guardanapo, põe a colher ao lado do prato de sopa, olha pra mim e me encara por uns 3, 4 segundos e eu aceno que concordo com a cabeça e a gente sai. E depois disso não diz mais nenhuma palavra até a gente voltar:

"-Que vento frio, cortante! Devo estar sangrando, melhor fazer um curativo pro corpo inteiro. E um pra alma."- faz o sinal da cruz e começa a rezar um Pai-nosso.

Talvez o que eu realmente goste nele é a ingenuidade imponderada do que ele fala quando está tudo silencioso, ou tenso principalmente. Às vezes ele abre a boca e é como um isqueiro tipo Zipo no meio da floresta, faz uma onomatopéia pra acordar todo mundo, acende uma tocha e, refletindo a chama em amarelo bem vivo nos olhos deles, sinaliza a presença de todo tipo de predadores. Aí, a chama se esconde dentro da tampinha e você fica esperando o bote de algum deles. Jesus, com essas metáforas, vocês vão achar que o louco sou eu.

"-"Está implícito?" Mas será possível? Agora quer dizer que "Está implícito" significa "não pergunte!?" Essa gente que cochicha o que ninguém quer ouvir, vocês têm que GRITAR!"- sentado na frente da tevê.

Meu tio não é nenhum Antônio Conselheiro. O que ele fala faz certo sentido quase sempre, e não é preciso muito esforço pra que as nuvenzinhas de pensamento que pairam sobre a sua cabeça se conectem com a realidade, mas acho que todo mundo desistiu de tentar encontrar ele nas suas próprias palavras.