terça-feira, 5 de outubro de 2010

Sobre dias de surpresa

São sete e meia, e os cidadãos incautos de Porto Alegre estão deixando suas casas, esposas e esposos e filhos sob a guarda da prece da manhã; não apenas é a hora da refeição mais importante, mas a da reza brava também. Quem não o faz, mantém suas cercas elétricas energizadas, seus cães bem alimentados e os salários dos empregados pagos em dia; esses podem se dar ao luxo de deixar a oração para os padres.

Abre-se então a grade de ferro maciço, a fechadura de baixo, a da porta e pronto, se está fora de casa, ar puro e... Há ainda o portão de ferro, que permanece chaveado por todas as vinte quatro horas de que o dia dispõe. É a chave nova, que foi trocada porque a vizinha do apartamento de baixo foi assaltada ali na frente na quinta passada. Ali, na frente de todo o mundo, na avenida, lá pelas oito da noite, horário de risco, ora. Ela decerto ainda saiu vestindo algum farrapo: a saia e a blusa exuberantemente explícitas, quase um tapa-sexo. Pediu pra ser atacada, e se não fosse por bandido, coisa pior, polícia e tal.

Atravessa-se a rua e corre-se, que o sinal está aberto, mas o trânsito ainda está chegando na esquina. Não encare as pessoas por algum tempo enquanto anda. As coisas são diferentes por aqui e ninguém se conhece; não deve-se estranhar com o estranhamento das outras pessoas, já que estranha-se com qualquer coisa por aqui. Não há motivos para preocupação com essas pessoas, elas hão de estar aí amanhã novamente.

O ônibus chega sorrindo, quase agradecendo cada passo dado dentro dele. Gentilmente nos leva e traz de qualquer parada ao preço de uma refeição. Levante-se para os velhinhos e não olhe torto para aqueles que ouvem suas músicas em alto volume, você consegue sobreviver com a música ruim, mas com uma bala na cabeça, torna-se mais difícil; Cada moleque é um potencial psicopata.

Durante a jornada de trabalho, atenta-se à presença de possíveis mal-intencionados ou de gastadores. Se dá tanta atenção para um quanto para o outro, por razões absolutamente diversas. O Carlton azul do intervalo destila o estresse de ter que ver aquela vaca de mocassim devolver a mercadoria por achar que o casaco de lã não acertava bem na cintura. Besteira, ela precisava é de um regime, não de um outro casaco. Aí, faz um escândalo todo pela demora na troca... O problema estava no programa no computador, mas a velha, com aquele dedo em riste, parkisoniando na sua cara, não queria saber. Depois da última baforada, sobra o filtro, a cinza, e a cara da velha pra se rir depois.

De segunda à sexta-feira, são dias de surpresas. Desde o acordar até a hora de dormir, acontecem massacres no morro, acidentes de trânsito, milhares de presos por tráfico e milhões são desviados para o bolso de políticos. Sábado e domingo são dias comuns, fica-se em casa, sem surpresas; Podem ser boas ou ruins, boníssimas ou péssimas. É melhor não arriscar. Liga-se a tevê e hiberna-se até que a segunda-feira chegue, e então, pânico novamente.

O cotidiano é, afinal, um processo majoritavelmente insosso que reserva imensas quantidades de emoções, das mais diversas. Mas se faz de tudo para evitar qualquer contato com elas.

Um comentário:

Mariana Ribeiro disse...

Sinceramente? Achei o teu melhor texto.
Adorei ele. De verdade.
Fico orgulhosa :)