domingo, 1 de maio de 2011

O Rio das Almas

(...)"E, afinal, o que seria de mim? Nada, meu senhor! Nada..."

"E isso, acaso, é motivo de preocupação? Ora, um nada por outro."

"Seu desdém me espanta, meu senhor. Me pergunto se há algum coração perdido dentro de ti, ou é vazio completo."

E tocava-lhe o peito com estocadas vigorosas de um indicador calejado, como se fosse provocar além de asco, alguma reflexão em seu senhor. Acreditava, ingênuo, que algo como o gérmen do questionamento moral fosse impugnado em seu senhor por cada vez que o tocasse. Talvez não o tenha tocado tantas vezes quanto o necessário.

"Por que motivo gasta teus pensamentos com objetivo tão fútil? Compaixão é o refúgio dos inseguros, dos perdidos e dos que a necessitam tanto quanto cedem. Ademais, não faço a linha da demagogia, e se me dou ao desserviço de falar-lhe é com sinceridade."

"Ha! Sinceridade mordaz! Qual ninguém presta-se a ouvir. Do contrário, invades o cérebro de quem te aproximas com sua língua ferina, não te poupas de golpes à navalha mal-afiada em cada ouvido do teu semelhante, se for; te comunicas com a cortesia de uma víbora antes do bote. E não me ponha na cara esse seu vocabulário vil. Tua imagem me aparece em pesadelos e eu os vivo todos os dias na obrigação de lhe ser fiel. A que ponto chega-se! A insanidade me tomava ainda esses dias do mês... Amaldiçoo agora a maldição que roguei ao negro dia em que conheci tua terra. Tão cego de ira que tornei-me, culpei a mim, a ela e a Deus, meu bom Deus, que julgo eu não ter conhecimento de sua existência, por não ter fulminado o senhor quando lhe cabia, no início de seu surgimento neste mundo! Desde cedo, o sacrifício de sua doce mãe para trazer-lhe à vida já mostrava a quê o senhor veio: o infortúnio. O senhor é quem traz os corvos até os cadáveres, é o senhor que espalha os insetos pelas casas, é o senhor que traz a peste! Esta terra negra guarda o sangue dos teus desafetos, e bebemos o sangue deles ao comer o que esta terra nos dá de comer! Tenho confissões que sobressaltam o vigário, de descrições da minha sede de revide! É o pior que fazes: Contamina com teu veneno e torna teus servos pares de ti em perversidade... Acaso tivessem o teu poder, tua história teria há muito sido feita esquecida."

Enquanto o servo vociferava seu monólogo, o senhor apenas arqueava suas sombrancelhas, demonstrando que havia algo de esperado na cena. E algo que esperava-o depois.

"Faz o que te mandam quando viram-te as costas e não podes mais ouví-los: Fode-te! Dana-te! Dana-te!"

E parte em direção ao seu aposento, certo de que não tardará e a desforra senhorial pousará sobre sua cabeça, ou estrangulando sua traquéia ou perfurando seu peito. Tinha pensado em algo que coubesse num momento como este havia tempos, mas convencera-se de que seu lugar. Embora lhe interessasse a idéia de um atentado contra seu senhor, era preciso bom-senso. A captura por homicídio de seu senhor traria muito mais determinação para o seu carrasco do que a simples blasfêmia. Por último, havia pensado em Deus, mas se Deus resguardava-se quanto à postura de seu senhor, teria alguma simpatia por um humilde servo que perdia mais tempo em igrejas do que na terra a trabalhar. Começa a juntar suas coisas.

"Pietro..."

"Sim, meu senhor?"

"Busque e escolte o senhor Yuri à sua nova morada, o 3º estábulo. Que seja a definitiva, entendeste?"

"Sim, meu senhor."

"Ah, e Pietro... A cidadela não deve achar-se informada dos terríveis desígnios que Deus, o bom Deus reservou ao seu companheiro, sim? Os cães estão sempre famintos."

Os segundos seguiam-se rápidos demais nos movimentos apressados de Yuri e espaçosos no caminhar calmo de Pietro. A porta se abre e Yuri vê seu algoz de longe, e ele também é visto. A obviedade da fuga faz Pietro lançar-se numa corrida despassada enquanto busca o facão na cintura. Os pertences foram jogados como obstáculos. O brilho metálico anuncia que é seu fim nesta terra ou recomeço noutra mais distante, no Rio das Almas. Era dia um dia claro. E ele se perguntava onde estava Deus. Talvez ele não tenha acordado hoje, pequeno.


Também no Het Nederlanse Konijin

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